sábado, 18 de dezembro de 2010

O excesso de peso da família com obesidade infantil Por:Andréia Mendes dos Santos

Revista Virtual Textos & Contextos, nº 2, dez. 2003.

            Atualmente, a obesidade tem sido notícia freqüente, ocupando lugar em reportagens de revistas, jornais e até especiais em programas de televisão. Por essa razão, os órgãos competentes encontram-se engajados na busca de alternativas para controlar a situação, sendo notícia projetos acerca de atendimento à obesidade pelos serviços de saúde, desenvolvimento de bons hábitos alimentares na merenda escolar, programa para o enfrentamento da obesidade mórbida, obrigatoriedade de rótulos nos produtos alimentícios, para informar seu valor nutricional, entre outros.
           As preocupações com o corpo e a aparência física associada ao magro encontram-se, hoje, em evidência, no dia-a-dia das pessoas. Além disso, têm-se informações sobre o crescimento do número de fórmulas mágicas em busca do corpo perfeito, incluindo as anfetaminas, fenfluraminas, fluoxetina, o uso indiscriminado de laxantes e diuréticos, agentes termogênicos, drogas que inibem a absorção dos alimentos e até hormônios tireoideanos. Na mesma perspectiva, observa-se o crescimento de instituições fundadas com o objetivo de combater a obesidade, ou o aumento da procura por atendimento especializado, nos consultórios
privados. A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que o crescimento do número de obesos é um fenômeno global.


           Considera-se o pressuposto de que existem outros fatores associados à obesidade, quer na constituição da doença, ou na convivência com a mesma. Isso significa dizer que a obesidade situa-se, hoje, além do paradigma entre saúde e doença. Apesar do crescimento dos índices, falar em obesidade significa referir-se a um grupo de minorias (não no sentido numérico), excluídos e discriminados, que se encontram marginalizados pela sociedade, sem possuírem força de representatividade. Em contrapartida, tem-se a preocupação com a beleza, elegendo o consumo de produtos light e diet, que não atendem à reversibilidade do quadro de obesidade, mas ao incentivo a um padrão anoréxico corporal.
            As possibilidades de que as crianças obesas de hoje se tornem adolescentes obesos amanhã e adultos obesos no futuro são grandes. A obesidade possibilita espaço para outras doenças, além do sofrimento no convívio, em longo prazo, com o desconforto provocado pela mesma. Excesso de peso está, na grande maioria das vezes, relacionado com excesso de comida.
            A pessoa obesa, ao sentir-se desconfortável, busca o consolo na própria comida, agudizando sua problemática. A questão de limites permeia a lista interminável de dificuldades em relação à obesidade infantil. Trata-se, também, a obesidade sob a ótica da seleção descontrolada da alimentação, incorreta e excedente, que ultrapassa os limites do possível.
            Esta pesquisa teve por objetivo verificar de que forma a família influencia no processo de adoecimento e tratamento da obesidade infantil, através do desvelamento de aspectos familiares, dentro do contexto social, econômico e cultural, presentes na problemática. Sendo assim, procurou-se conhecer, na sua magnitude, quais os riscos sociais da obesidade infantil, a fim de fornecer subsídios que possam contribuir para o tratamento da doença. Procurou-se ouvir os familiares, porque acredita-se que eles (aqui na amplitude de responsáveis) são essenciais para a formação das crianças e são também portadores da doença.
            Historicamente, o fator comida sempre esteve presente na vida das pessoas. A relação com a alimentação representa tamanho prazer que se vem manifestando através do crescente número de confrarias de apreciadores da comida, apresentação de programas culinários na televisão, entre outros. Percebe-se também a valorização do paladar, ao se direcionar a outra lógica: Existe um mercado que vive desta relação.  São chocolates com formatos eróticos, preservativos sexuais com sabor, pasta de dentes infantil nas versões tutti-frutti, morango, uva, chiclete, remédios, da mesma forma, etc. Logo, percebe-se a existência de um erotismo também envolvida na comida.
            Mesmo que a moda dite o padrão estético da magreza, a obesidade se encontra fortemente associada à fartura, refletindo-se diretamente nas classes sociais. A fantasia da incorporação da riqueza encontra-se presente em todos os níveis econômicos, justificando as razões de a obesidade desenvolver-se nos variados níveis sociais.
            Pode-se, numa primeira tentativa, definir obesidade como “Doença psicossomática, de caráter crônico, com determinantes genéticos, neuroendócrinos, metabólicos, dietéticos, ambientais, sociais, familiares e psicológicos” (Felippe, 2001, p. 17). Klish (1998) acrescenta que a obesidade, além de ser uma doença, é um fator de risco para muitas outras potencialmente fatais. Assim, são considerados transtornos alimentares “quando a atitude em relação à comida e o peso se transformou naquilo que rege a conduta” (Herscovici, 1997, p. 31).
            A obesidade é compreendida como prejudicial à saúde, na sua perspectiva física e psíquica. É uma doença complexa, que possui causas multifatoriais, como nutricional, psicológica, fisiológica, social e médica, associadas à interação com uma possível predisposição.
           Entre os fatores ambientais, podem-se citar dietas hipercalóricas, nível de atividade física, o fumo e a ingestão de álcool (Mello, 2000).
           Por essa razão, a diminuição do peso é uma das indicações terapêuticas no caso de outras enfermidades. São também considerados riscos associados à obesidade: as diabetes, a hipertensão arterial, as doenças cardiológicas, o câncer (especialmente de mamas e intestino), os acidentes vasculares cerebrais, apnéias e artroses (Felippe, 2001).
           Durante a infância, o estado nutricional deve ser avaliado na relação entre o peso e a altura da criança, salientando-se que é possível interferir no crescimento, uma vez que este depende, principalmente, de alimentação correta (Duarte, 2001). É através da altura que se encontra representado o estado nutricional; o peso pode oscilar em relação à altura do indivíduo.
           Aspectos psicossociais, econômicos e culturais Na revisão bibliográfica, vários autores, entre eles, Felippe (2001), Viuniski (1999) e Herscovici (1997) consideram a obesidade também como uma doença de dependência e descontrole de excesso de alimentos, tendo como conseqüência mais impactante os riscos sociais e psicológicos, ressaltando-se a própria saúde, significando dizer que o sujeito obeso não o é por opção, apesar de fazer-se muito presente o fator prazer no ato de comer, mas o resultado desse estado se reverte em novas formas de sofrimento e ansiedade.
           Somando-se a isto, vislumbramos razões suficientes para acreditar que estamos passando, em nível mundial, por um período de grandes transformações, cujos efeitos atingem a singularidade do sujeito, fazendo com que os homens passem a buscar alternativas de sobrevivência, por mais melancólico que isso pareça. Várias transformações introduzem-se na vida diária dos sujeitos, negando a satisfação dos desejos.
            É errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais das nossas vidas (Guiddens, 2000, p. 22).
           Um estudioso em índices de obesidade mundial, James (2002), defende que existe uma relação entre a globalização e o crescimento dos casos de obesidade. Ao referir-se à questão, ele dita um novo conceito: globesidade. Para o autor, os efeitos resultantes dos processos de globalização chegam aos indivíduos carregados de uma lógica própria, contraditória e antagônica, derrubando e pondo por terra os sistemas vigentes, alterando o mundo do trabalho, o espaço social, as famílias, as crenças e religiões. Como exemplo, sabe-se que consumo é baseado nas necessidades materiais, regendo as regras do vestir e do que comer, incitando a um consumo cada vez mais dispendioso. Frente à crise financeira e instabilidade socioeconômica, as famílias vêm se reestruturando, levando as mulheres a se organizarem em um emprego de período integral, contribuindo para as despesas do lar, mas, em contrapartida, passando a se ausentar do convívio mais próximo com os filhos e o companheiro.
         O outro aspecto destacado por Felippe (2001) refere-se ao consumo imposto e desleal de produtos, basicamente porque não há necessidade de consumi-los e porque a lei da oferta é extensa. A indústria dos alimentos é poderosa e possui, de uma certa forma, um monopólio, uma vez que todos necessitam alimentar-se. O modo de ação utilizado configura-se através da mídia, porque esta trabalha com questões atuais e interessantes, tendo o poder de produzir, coletivamente, um pré-julgamento, que irá suscitar emoções e produzir uma representação social sobre aquilo que está sendo anunciado. Ademais, é a mídia que define a duração e a intensidade de um determinado conteúdo, de acordo com os seus interesses (comerciais).
        A obesidade possui inúmeras determinações sociais. Durante muito tempo, a doença vem sendo relacionada com as emoções, sendo este um fator agravante. Cada vez mais, o indivíduo obeso é visto com muito preconceito em nossa sociedade. Para Stenzel (2002, p. 14), a obesidade e a magreza possuem significados em relação à coletividade.
        A representação da imagem do gordo é ligada à responsabilidade total deste sobre a sua situação. Pensa-se que os gordos assim o são porque comem demais e são incapazes de se controlar. “Os gordos comem mais do que a sua parte” (Fischler, 1995, p. 74), reforçando a idéia de que são transgressores que violam permanentemente as regras do comer e distorcem a lógica do prazer ao serem vencidos pela vontade, que supera os limites da saciedade e do próprio controle.
        A dívida contraída pelo sujeito obeso para com a sociedade, por ocasião do prejuízo de comer mais do que a sua parte, ameaça os fundamentos da organização social e é traduzida como compensações dos gordos para a sociedade, de forma cômica, ou o inverso, sob zombaria sobre os mesmos. A maneira encontrada é a de transformar a gordura em força, desenhando músculos.
       Partindo-se deste referencial de desconforto, com o qual o indivíduo obeso convive e do questionamento sobre o que instiga atualmente a batalha pelo alcance de um padrão rígido de beleza magra, no qual, mesmo pessoas sem problemas de peso estão interessadas em perder alguns quilos, considera-se que os indivíduos obesos são alvo de exclusão em nossa sociedade.
        Ao tratar de exclusão, temos presentes subjetividades específicas que circulam entre o sentir-se incluído e o sentir-se discriminado ou revoltado. A exclusão se configura como um processo complexo, que envolve o homem e suas relações com os outros. As subjetividades contidas na exclusão manifestam-se, no cotidiano, através da identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência (Sawaia, 1999).
        Para a autora acima, o conceito de exclusão pressupõe ambigüidade, uma vez que se trata de um processo de grande complexidade e contraditoriedade, composto por “uma dimensão objetiva de desigualdade social, a dimensão ética da injustiça e a dimensão subjetiva do sofrimento” (Sawaia, 1999, p. 8). Ela segue afirmando que todos estamos incluídos, de alguma forma; logo, ao se falar de exclusão, deve-se corrigir pela dialética exclusão/inclusão, porque a sociedade exclui para incluir, traduzindo a condição da ordem social desigual, explicitando o descompromisso político com o sofrimento do outro.
Metodologia da pesquisa
        Foram adotados os métodos de pesquisa qualitativa como perspectiva metodológica a ser seguida, Para o Serviço Social, a metodologia da pesquisa qualitativa apresenta-se como possibilidade para conhecer plenamente os “sujeitos com os quais dialogamos” (Martinelli, 1994, p. 7). Caracterizada como pesquisa exploratória, os métodos da Análise de Conteúdo foram utilizados como técnica de análise, por possibilitar buscar-se a articulação entre os sentidos, de acordo com os sujeitos e a história.
       Participaram da pesquisa familiares de 34 crianças, estas com idade entre 8 e 11 anos incompletos, com diagnóstico de obesidade infantil. Essas crianças faziam parte do Programa de Reeducação Alimentar de Obesidade Infantil1, da Faculdade de Medicina da UFRGS. O grupo, inicialmente, era composto por 34 mães, três pais, uma avó materna e uma irmã, e a participação nos encontros ocorria pela livre iniciativa dos sujeitos. Não se determinava qual familiar deveria participar, a regularidade da presença do mesmo e o número de componentes da família que participavam; havia apenas a exigência de que o participante residisse junto à criança.
       Ocorreram sete encontros mensais, com os familiares reunidos num único grupo, no período de junho a dezembro de 2001. A alavanca inicial da discussão era uma palestra com assuntos pertinentes à obesidade infantil; contudo, cabe ressaltar que esse momento caracterizava-se pela liberdade de expressão dos familiares. A escolha pela abordagem grupal não foi feita ao acaso, ou por economia de tempo, mas partindo do princípio de que “o ser humano sempre viveu em grupos” (Filho, 2000, p. 30), e esta condição era possível de ser respeitada.
Resultados
         O primeiro aspecto que emergiu na participação das famílias foi a ansiedade. Para os pais e responsáveis, a situação era carregada de sofrimento. Por um lado, as queixas e dúvidas trazidas por eles repassavam os aspectos nutricionais e fisiológicos, comprometidos com o medo de outras doenças, ou com carências que a obesidade possa desencadear. Na obesidade infantil, o aspecto corporal não é referência e estímulo para a luta contra a doença. Mas quando se reporta aos sentimentos, refere uma angústia que consegue ser identificada com origens variadas.
         Nas falas das famílias, para além do fator excesso de comida e dificuldade em impor limites às crianças, surgiram questões como separações e descasamentos, nascimentos, dificuldades de lidar com o estímulo da mídia, transformações no trabalho, entre outros.
        Situações essas cada vez mais comuns no dia-a-dia dos indivíduos. Num cenário de grandes transformações é que se depara com a questão epidêmica da obesidade. Isso conduz à reflexão sobre possíveis interlocuções entre as questões, acenando para a possibilidade de conexão entre estas realidades: o crescimento da obesidade e as transformações da contemporaneidade. Na mesma ótica, o aumento dos casos de obesidade vem se tornando preocupação social, passando-se a considerar a obesidade como um sintoma social de sofrimento.
         Neste momento em que a família busca adaptar-se às novas condições do dia-a-dia, denominando isso de problema da contemporaneidade, emerge de dentro dessa estrutura um foco engrandecido de sofrimento, relacionado a perdas reais ou medos, inundações de culpa, economia de afetos e processos de exclusões dentro da estrutura analisada. A família não identifica o rumo que deve assumir, pois está perdida. Prioriza a manutenção organizacional, preocupando-se em manter o trabalho, adequar-se ao arrocho salarial, manter a escola, etc. Exercícios extenuantes e infindáveis.
          De outro lado, a realidade de se viver em um único mundo, da globalização, proporciona trocas entre as variadas culturas do globo terrestre. É a apresentação de novas tecnologias, novas estéticas e novos produtos para sujeitos estranhecidos. Isto apresenta seus prós – novas estratégias, desenvolvimento, acesso diversificado, fim das fronteiras, etc., mas traz consigo, também, aspectos preocupantes, como a sedução pelo consumo de produtos desconhecidos, excedentes e que, muitas vezes, não estão de acordo com a cultura da região. Entre as estratégias adotadas para a venda de qualquer produto encontram-se as propagandas, o marketing que circula a transação. A forma que favorece esta apresentação é facilitada pelos meios de comunicação, que agem em seu próprio interesse, sem limites e com fartura de ofertas.
         A televisão seduz através da propaganda dos produtos alimentícios, das etiquetas e das marcas. A cultura vem sendo modificada. Atualmente trocam-se refeições completas por lanches rápidos, oferecidos por fast foods, com rapidez, boa higienização e sabor padronizado, sempre ao contento do consumidor. Os preços não diferem tanto. Como alternativa do mercado interno, as comidas passaram, em uma grande variedade, a ser oferecidas por peso, facilitando o acesso dos indivíduos. Por outro lado, as grandes redes conseguem baratear seus custos, tornando possível a reversão entre o preço do refrigerante e o suco natural, por exemplo. O valor de uma embalagem de dois litros de refrigerante adquirida em supermercado equivale ao consumo de um copo (200 ml) de suco natural em um estabelecimento alimentício.
        Transpondo-se a questão para as práticas sociais, seria a falta de segurança a única razão para a não ida ao parque? Não se desconhece que essa situação compõe um sério fator da atualidade, mas, de outra parte, não se confessa que se está com vontade de jogar aquele videogame, comprá-lo, entre tantos outros exemplos.
        Neste estudo, percebeu-se que as famílias estavam cheias de recomendações comportamentais, sobre como fazer a comida, sobre a importância da prática de atividades físicas, sobre a necessidade de limites para as crianças, sobre as possibilidades de privação, etc.
        Por outro lado, mesmo sendo o espaço de discussão livre, os adultos não contextualizaram suas relações com os filhos sobre as emoções. Houve economia deste aspecto. Falaram sobre seus sentimentos em relação à obesidade e também em relação à comida, mas em bem menor escala se referiram aos sentimentos em relação aos filhos, que viviam a situação de obesidade.
       Identificou-se pouca exposição dos afetos, como uma estratégia (inconsciente) adotada pelas famílias das crianças obesas a fim de enfrentarem a crise das transformações. Isso se percebe na falta do hábito de agraciar as crianças, muitas vezes considerando-as como culpadas e responsáveis pela doença, considerando-as numa relação descartável em nível de desejos onde é possível entregar nas mãos de Deus.   De outro lado, percebeu-se a dificuldade no relacionamento entre familiares e crianças, na medida em que aqueles não conduziam as discussões entre eles de forma clara e crítica. Mesmo participando de um programa de reeducação alimentar, escutou-se em suas falas: “Ah! acabou a maionese, só um pouquinho, eu já vou buscar!” ou “Ah! esqueci de comprar!”, quando a intenção que está por trás é a economia no consumo, ou a privação. Mas é difícil assumir este papel de malvado, quando já se sentem perversos por estarem ausentes, estarem em processo de modificações no próprio seio da família. Como reflexo aos desvios de explicação, as crianças respondem com a comida escondida, mentiras, entre outros.
        No caso da família com problemas de obesidade, pode-se dizer que ela funciona em torno de uma mesa alimentar em descontrole. Dessa forma, o problema da obesidade é bem mais complexo, não se resumindo apenas a um problema individual, nem apenas ao âmbito familiar.
       Na família se identifica a cultura vigente, o gosto pelo comer, dificultando a prática limitante para a alimentação, porque ali iria apoiar-se uma forma de repressão, negativa sobre objetos de desejo comuns: o prazer. Ora, então tende-se a pensar que a família e a criança estão reproduzindo práticas às quais se sujeitam na sociedade contemporânea que são a contradição e a ambigüidade dos desejos.
        Percebe-se que a situação da obesidade incorpora ansiedade e frustração, além do que já citamos. Por outro lado, a posição das crianças não deixa de fora a dependência que as mesmas vivem em relação aos adultos, razão por que o olhar dos pais deve estar direcionado para as questões práticas da criação e do desenvolvimento.
        A família é hoje uma estrutura em restabelecimento. Frente a todas as transformações expostas, o núcleo vem desenvolvendo uma economia nos afetos, refletindo-se maciçamente no aumento de sentimentos semelhantes aos de culpa, permitindo a inclusão de estigmas no próprio grupo e, em nível social, exclusão e distanciamento. Esses movimentos não são naturais, eles se configuram em respostas desordenadas a um dos piores momentos familiares. Como resposta a esse sofrimento infindável, os sujeitos se encontram em busca de novas fontes de prazer, saciedade e bem-estar.
       Significa olhar-se para essa realidade na perspectiva de necessidade de satisfação. O ultrapassar dos limites ocorre por conta das carências e medos presentes nas conjunturas da vida diária dos indivíduos – crianças e familiares. A obesidade não se instala ao acaso, está sempre relacionada com excesso de comida.    Por outro lado, as crianças que buscam na comida a fonte de satisfação e o combustível necessário para enfrentar as frustrações do dia-a-dia contam com uma certa dose de aprovação (não consciente) das famílias para tal prática.
       O hábito de comer bem das crianças proporciona aos familiares (enquanto não há repercussões fisiológicas, o que justifica o medo de anemia, colesterol elevado, etc.) um pouco de prazer, afugentando os fantasmas da desnutrição, ou do descuido com as crianças. A ausência dos progenitores ou responsáveis fica reduzida porque, com o fruto, foi possível agradar aos pequenos. Eles saborearam a comida em que a mãe depositou afeto ao fazê-la. O consumo de alimentos e a fartura estão também associados à saúde, significando, para os adultos, que eles são bons cuidadores da criança.
        De outra parte, a sublimação da comida é geradora de exclusão do sujeito na sociedade, pelo seu corpo fora dos padrões da moda. Para a sociedade, que está revendo seus conceitos de saúde e doença, a intenção dos adultos em oferecer abundância às crianças é positiva, no entanto, a mesma estrutura cobra da família o pecado de não impor limites aos pequenos.
         Ao mesmo tempo em que se adjetiva o sujeito que sofre da obesidade com o termo adição, estende-se a lógica para seus familiares, que na amostra deste estudo, demonstraram, sofrimento frente às transformações da contemporaneidade, tendências a desenvolver atitudes semelhantes de compulsividade como formas de compensação.
        As famílias – adultos e criança em situação de obesidade – sofrem de desconforto extremo. Os indivíduos buscam formas alternativas, no caso, as de adições e compulsões, para equilibrarem os sentimentos. Pensa-se nas formas de adição que comumente fazem parte da nossa sociedade, citando-se a adição ao álcool, às drogas, ao tabagismo, ao trabalho que envolve cerca de mais de dez horas diárias, entre outros. E, aqui, soma-se mais a obesidade.
       Na atualidade, o problema da obesidade surge no intuito de camuflar as frustrações e ajustar-se ao cotidiano, sem perspectivas de alterações que privilegiem o indivíduo, que busca na comida uma fonte de prazer. Para as crianças, este é um caminho possível, já que encontram todos os estímulos e ofertas irresistíveis, somando-se a isso a boa intenção dos pais em atendêlos.
       Por outro lado, para a sociedade que vem manifestando este sintoma social, o problema da obesidade, há pouco tempo, começou a assustar. Especialmente no caso da obesidade infantil, o drama eclode quando se atinge o ápice da problemática, passando as crianças a sofrer os efeitos da doença, manifestando alterações orgânicas.
       Apesar disso, num mundo em descontrole no qual se tem excesso de violência, elevação nas discussões sobre sexualidade e excessos de transformações, a obesidade configura-se uma doença que apenas agora consegue apresentar-se como de mesmo peso que as demais preocupações da contemporaneidade.
       A situação da obesidade é somatória de vários fatores adversos a uma situação de frustração. Incorporar e reter, de forma insaciada e voraz, pode significar, para a criança obesa, uma forma de compensação ao esvaziamento desequilibrado que ela sentiu com o processo nostálgico de desmame, tendo desenvolvido resíduos de desconfiança em suas relações. A criança obesa, ao contrário da imagem de preguiçosa, é ativa. Ela luta de modo singular, promovendo uma subjetivação dominante através da adição à comida. Convém ressaltar que, em relação ao problema, às crianças, além do fator excesso de comida, consiste em associar a alimentação um refúgio para os seus medos, angústias e temores de rejeição. Para a Psicanálise, isso significa um tipo de escolha de objeto predominantemente narcísica, através de um funcionamento defensivo que envolve os mecanismos de recusa e dissociação, com produção de formações sintomáticas. Dessa forma, pode-se compreender diversos quadros de patologias atuais ou contemporâneas, tanto pelo caráter epidêmico que muitas delas vêm adquirindo quanto das linhas de trabalho que enfatizam, em sua determinação, o papel dos modos hegemônicos de produção de subjetividade.
        Concluindo, no caso da obesidade infantil, em que vários atores se encontram relacionados, considera-se válido incitar à luta pelo reconhecimento de condições de vida justas aos portadores da doença. Significa atendimento acessível de programas no plano médico, nutricional, psicológico e social que contemplem as características de quem sofre da obesidade, atenção especial nas escolas e maior controle na alimentação em geral. Tudo isso, considerando a magnitude da doença, envolvendo o sujeito direto – o obeso – e aquelas pessoas que vêm sofrendo da lógica da obesidade, sem ter ainda aderido ao corpo com excesso, especialmente, a família, que hoje se configura como a gestora dos riscos sociais que envolvem a obesidade.

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